A transposição das diretivas europeias de combate à elisão e ao planeamento fiscal agressivo

O combate à fuga aos impostos é um tema que reúne raros consensos.
Com efeito, quer estejamos a falar com aqueles que defendem um Estado forte, capaz de providenciar aos seus cidadãos os serviços considerados essenciais, quer com os que sonham com um Estado mais leve e benevolente para com os nossos bolsos, a justiça fiscal é uma preocupação de todos.

Nos últimos anos temos assistido a uma mobilização internacional crescente com a elisão e com o planeamento fiscal agressivo, ilustrado pelas recomendações e instruções emitidas pelas organizações internacionais aos seus países membros com vista à prevenção daquelas práticas.

Neste contexto, foi na sequência das conclusões alcançadas nos relatórios do projeto desenvolvido pelo G20 e pela Organização para o Comércio e Desenvolvimento Económico (“OCDE”) para a prevenção da erosão da base tributável e da transferência de lucros, vulgarmente conhecida pela designação BEPS (“Base Erosion and Profit Shifting”), que a União Europeia veio promover duas iniciativas legislativas complementares, conhecidas por ATAD (“Anti Tax Avoidance Directive”), direcionadas para a consagração de instrumentos anti-abuso e para a prevenção de práticas de elisão fiscal por parte das empresas.

Um dos pressupostos da integração na União Europeia é a transposição, por parte dos Estados-membros, das diretivas emitidas pelo Conselho. Por outras palavras, cabe aos governos dos vários países da União, dentro de um determinado prazo e com uma margem de conformação mais ou menos limitada, a transformação destas leis europeias em leis nacionais. Como tal, o momento da transposição das ATAD para a ordem jurídica portuguesa chegou no início deste ano, com a Proposta de Lei n.º 177/XII, do Governo, debatida e devidamente aprovada em plenário da Assembleia da República no passado dia 8 de março e, entretanto, publicada (Lei n.º 32/2019, de 3 de maio).

De acordo com a exposição de motivos do Governo, esta iniciativa legislativa não foi apenas motivada pelo cumprimento da obrigação comunitária de transposição das diretivas, mas também pela preocupação do executivo em promover “um combate sem tréguas à fuga ao pagamento dos impostos” e a eficácia na respetiva cobrança.

Em termos práticos, a nova lei vem promover alterações, entre outros, ao Código do IRC e à Lei Geral Tributária. Da análise da nova redação destes normativos resulta claro que o legislador não desvirtuou o espírito nem a letra das ATAD, tendo a transposição operada sido praticamente direta.

Do leque de situações que os legisladores visaram tutelar, ganhou destaque aquela que parece, à primeira vista, ter o maior potencial de gerar consequências práticas relevantes – o ajuste à cláusula geral anti-abuso, prevista entre nós no artigo 38.º da Lei Geral Tributária.

Na sua redação anterior, a cláusula geral anti-abuso já prevenia a possibilidade de os sujeitos passivos levarem a cabo mecanismos artificiosos que, na ótica da administração tributária ou dos tribunais, tivessem por principal intuito a redução ou mesmo a eliminação da respetiva carga fiscal. O critério para encontrar uma situação abusiva era o da substância económica, isto é, estando uma operação económica alicerçada num racional económico válido, não se estranharia qualquer vantagem fiscal que dela resultasse para o sujeito passivo, que seria tida como mero produto de uma relação causa-efeito.

No entanto, com a consagração das diretivas europeias, o campo de ação da regra anti-abuso foi alargado, estando agora sujeitos a desconstrução quaisquer negócios ou mecanismos que a administração tributária possa vir a considerar como abusivos. Para tal, já não será necessário que a principal vantagem para o sujeito passivo seja a obtenção de uma vantagem fiscal. Agora, para que se acione a cláusula geral anti-abuso, basta que do leque de vantagens principais que o sujeito passivo obtenha através de determinada operação, se possa identificar uma vantagem fiscal.

Adicionalmente, quando das operações em causa resultar uma redução ou mesmo a eliminação da retenção na fonte, com caráter definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produziu na esfera do beneficiário do rendimento, procedendo-se à respetiva correção na esfera deste, sem prejuízo das regras gerais de substituição tributária, caso tenham aplicabilidade no caso em concreto.

Dito isto, dificilmente se poderá colocar em causa a ratio dos novos aditamentos à cláusula geral anti-abuso. Com efeito, toda e qualquer medida adotada para combater práticas fiscais abusivas deve ser celebrada e, tornando-se evidente a existência de lacunas na lei que possam dar azo a essas situações, o legislador deve tomar precauções.

Não obstante, a nova redação do artigo 38.º da Lei Geral Tributária não deixa de suscitar preocupações compreensíveis. Com efeito, não é claro que não se passe a poder penalizar injustamente o contribuinte ao se desconsider, para efeitos fiscais, uma decisão que tenha sido tomada por razões económicas legítimas, mas da qual resulte, entre outros benefícios evidentes, e com maior ou menor grau de coincidência, uma vantagem fiscal para o contribuinte.

Esta preocupação resultava, desde logo, da leitura do texto da primeira das ATAD. No preâmbulo da Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, o legislador europeu afirma que o contribuinte deve dispor do direito de optar pela estrutura mais vantajosa do ponto de vista fiscal para as suas atividades comerciais. No entanto, ao alterar a cláusula geral anti-abuso no sentido de os Estados-membros deverem “ignorar uma montagem ou uma série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável”, não é certo que o contribuinte não tenha perdido aquele direito.

Neste contexto, não será descabido estabelecer uma analogia com uma regra que há muito se encontra consagrada no direito comercial internacional, e prevista entre nós no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais: a business judgement rule.

Pretendendo proteger decisões válidas de gestão da ingerência dos tribunais, a business judgement rule determina que a legitimidade de uma decisão tomada por um administrador ou gerente, no desempenho das suas funções, não poderá ser questionada pelos tribunais, a não ser que seja feita prova de que o administrador violou os seus deveres fundamentais de cuidado e de lealdade. Os deveres de cuidado reportam-se a um processo de decisão informado, diligente e criterioso, ao passo que os deveres de lealdade visam acautelar potenciais conflitos de interesse, garantindo que o administrador agiu em conformidade com o objeto social da empresa a seu cargo.

Na base da consagração daqueles princípios esteve, entre outras, a premissa de que o juiz de direito não é um gestor, e que nessa medida não se encontra em posição de decidir sobre o mérito de uma decisão empresarial, salvo à luz dos princípios de direito que informam a business judgement rule. A ponte que aqui podemos construir com a nova formulação da cláusula geral anti-abuso é simples: se o juiz de direito não é um gestor de empresas, não devendo por isso pronunciar-se sobre o mérito de uma decisão empresarial legítima, talvez o mesmo se devesse aplicar à Autoridade Tributária e Aduaneira.

O propósito da cláusula geral anti-abuso deve retirar-se da sua própria designação, ou seja, o que esta regra deve prevenir são situações de facto abusivas e contrárias à lei fiscal. Caso venha a prevenir situações que, não sendo abusivas, tenham gerado uma vantagem fiscal para o contribuinte, corre-se o risco de corromper o seu sentido.

Avizinha-se muito contencioso sobre esta matéria!

Sérgio Santos Pereira, José Pedro Marcelino