Recomendações da OCDE sobre o impacto da Covid-19 nos preços de transferência

Em dezembro de 2020, a OCDE emitiu um documento orientador sobre as implicações da Covid-19 em sede de preços de transferência dirigido às empresas multinacionais e às administrações fiscais.
Estas Recomendações pretendem fornecer um conjunto de diretrizes relativas à aplicação do princípio de plena concorrência nas transações vinculadas afetadas pela crise pandémica. Nesta senda, as Recomendações centram-se em quatro áreas prioritárias.
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Recomendações sobre a análise de comparabilidade

A mudança sem precedentes na economia mundial após o surto da Covid-19 criou desafios únicos para a realização de análises económicas. A pandemia pode ter um impacto  significativo nos preços de algumas transações entre entidades independentes, bem como reduzir a fiabilidade dos dados históricos utilizados nas análises de comparabilidade.

Esta situação pode exigir que os contribuintes e as administrações fiscais considerem abordagens práticas que possam ser adotadas para lidar com o défice de informação, tais como:

  • Comparar os valores orçamentados com os valores reais, apurando todos os fatores económicos relevantes que afetaram os resultados e que devem ser considerados para determinar o impacto isolado da pandemia;
  • Utilizar as bases de dados comerciais de forma razoável, baseando a sua análise nos dados do ano anterior e utilizando os dados do ano atual na medida do disponível;
  • Permitir ao contribuinte incorporar informações que se tornam disponíveis após o encerramento do período de tributação para corroborar que a transação cumpre com o princípio de plena concorrência e reportar os resultados nas declarações fiscais (abordagem ex post);
  • Flexibilizar prazos para permitir ajustamentos de preços de transferência antes do preenchimento das declarações fiscais;
  • Corroborar o cumprimento do princípio de plena concorrência de uma operação vinculada através do uso de mais de um método de preços de transferência;
  • Garantir que os dados financeiros dos anos afetados pela pandemia não distorcem indevidamente os resultados dos períodos pré ou pós-pandemia, podendo ser aconselhável separar os períodos de forma a evitar análises distorcidas;
  • Incluir mecanismos de ajuste dos preços, de forma a que os preços para o ano corrente possam ser ajustados num período posterior, quando informações mais precisas para determinar o preço de transferência em condições normais de mercado estiverem disponíveis;
  • Rever o conjunto de entidades comparáveis e, se necessário, realizar uma nova estratégia de pesquisa de comparáveis ao invés da mera atualização de dados financeiros com base na pesquisa anterior;
  • Manter na amostra os comparáveis que apresentem resultados negativos mas que satisfaçam os critérios de comparabilidade, dado que não devem ser rejeitados com base apenas no facto de apresentarem perdas em períodos afetados pela pandemia da Covid-19.

Recomendações sobre perdas e imputação de gastos relacionados com a Covid-19

Durante a pandemia, muitos grupos multinacionais sofreram perdas em resultado da diminuição da procura, incapacidade de obter ou fornecer produtos ou serviços ou ainda, em resultado de custos operacionais excecionais e não recorrentes. Ao considerarmos este tema, três questões justificam uma discussão específica:

  1. A atribuição dos riscos nas operações intragrupo de cariz financeiro ou comercial determina a forma como as perdas são repartidas entre partes relacionadas; 
  2. O tratamento dos custos “excecionais”, “não recorrentes” ou “extraordinários” incorridos em resultado da pandemia não será ditado pelo rótulo aplicado a tais custos, sendo necessária uma análise da transação, dos riscos assumidos pelas empresas nesta transação e uma compreensão de como entidades independentes reconheceriam tais custos;
  3. A aplicação de cláusulas de força maior, a revisão e a revogação de acordos intragrupo devido à pandemia pode ter impacto na imputação de perdas e gastos específicos entre as empresas de um grupo multinacional, exigindo também uma consideração específica no atual contexto.

Destacamos, de seguida, as principais recomendações da OCDE sobre perdas e imputação de gastos derivados da pandemia, entre empresas pertencentes a um grupo multinacional:

  • As entidades designadas como de “risco limitado” podem incorrer em perdas no âmbito da Covid-19, no entanto, será necessário elaborar uma análise da repartição dos riscos entre as partes envolvidas na transação;
  • As administrações fiscais deverão analisar o cenário pré e pós pandemia de forma a avaliarem se o contribuinte está a tomar posições consistentes de acordo com o seu perfil funcional de risco limitado;
  • Os custos operacionais excecionais e recorrentes durante o período pandémico podem incluir despesas com equipamento de proteção individual (EPI), reconfiguração de espaços de trabalho, despesas com tecnologias de informação, entre outros, verificando-se que estes custos poderão ser alocados entre partes relacionadas desde que exista suporte documental para este tipo de transações;
  • A crise pandémica provocada pela Covid-19 não pode ser utilizada pelas partes, cujos contratos contenham cláusulas de força maior, de forma automática, sendo necessário analisar as circunstâncias económicas que estiveram na origem daquele contrato, a atuação das partes ao longo do processo, assim como as opções realisticamente disponíveis.

Recomendações acerca dos programas de apoio governamental 

A crise pandémica da Covid-19 veio direcionar a atenção dos governos para a saúde pública e controlo da disseminação do vírus enquanto reúne esforços para apoiar, tanto as empresas como os trabalhadores, na gestão do impacto negativo da pandemia nas atividades, oportunidades de crescimento e de rendimento. Para tal, uma das medidas adotadas pelos governos passa pela definição de programas de apoio governamental - programas de natureza monetária ou não monetária, disponibilizados por entidades públicas, que concedem um benefício económico aos contribuintes - e que podem assumir a forma de:

  • Programas de retenção de emprego (como por exemplo, regime de lay-off por encerramento da atividade que subsidia diretamente as horas não trabalhadas);
  • Programas de apoio financeiro e aumento de liquidez (como por exemplo: garantias de empréstimos, diferimento no pagamento de empréstimos, benefícios fiscais, entre outros).

Os termos e condições de cada ugm destes programas, quer sejam disponibilizados a entidades pertencentes a um Grupo Económico ou a entidades independentes que operem no mesmo mercado, devem ser considerados quando se pretende determinar o seu potencial impacto em operações vinculadas, quando comparados os seus efeitos com outros programas assistenciais pré-existentes.

Neste contexto, a OCDE publicou um conjunto de orientações acerca do tratamento a conferir aos programas de apoio governamental, em sede de preços de transferência, nomeadamente:

  • Determinar se o apoio governamental é ou não economicamente relevante, dependerá de uma análise às suas características, o que possibilitará demarcar em que casos a sua aceitação teve um impacto direto (como exemplo: subsídios salariais), e mais relevante, ou indireto (por exemplo: fornecimento de infraestruturas pelo governo) e menos relevante; 
    Concluindo-se pela sua relevância económica, esta informação deverá ser incluída na documentação de preços de transferência;
  • A análise do potencial impacto da assistência governamental no preço de uma operação vinculada, deverá considerar alguns aspetos como a disponibilidade, o propósito, duração, entre outras condições impostas pelo governo aquando da atribuição do apoio;
  • Por outro lado, também a alocação de riscos economicamente relevantes, o nível de concorrência e a procura devem ser considerados, de forma a aferir se a receção do apoio governamental impacta na forma como uma Empresa / Grupo fixa os preços face a clientes terceiros independentes;
  • No que se refere ao impacto do apoio governamental nos riscos de uma operação, de acordo com as Orientações da OCDE, a receção do apoio governamental poderá mitigar o impacto negativo dos riscos, enquanto que não deverá alterar a atribuição de risco numa determinada operação vinculada;
  • Finalmente, a receção de apoio governamental pode influenciar a análise de comparabilidade. Assim, para a elaboração de uma análise de comparabilidade a OCDE recomenda a seleção de transações independentes no mesmo mercado geográfico ou mercados geográficos similares, podendo ainda ser necessária a revisão de estratégias de pesquisa, ou mesmo a elaboração de uma análise corroborativa.

Recomendações sobre Acordos Prévios de Preços de Transferência 

As alterações nas condições económicas motivadas pela pandemia trouxeram desafios aos Acordos Prévios de Preços de Transferência (APPTs) em vigor, bem como aos que estão sob negociação.

Recomendações da OCDE para APPTs em vigor

  • A pandemia não representa per si, um fator de rutura dos APPTs em vigor em 2020, os quais deverão ser respeitados e cumpridos pelos contribuintes;
  • Não obstante, o contribuinte deverá avaliar se as hipóteses críticas do acordo foram comprometidas em face das alterações das condições económicas motivadas pela pandemia;
  • Concluindo pela incapacidade de cumprir as hipóteses críticas do acordo, o contribuinte deverá, de forma transparente e atempada, reunir e providenciar à(s) Administração(s) Fiscal(s) envolvida(s), a documentação comprovativa do não cumprimento, com dados do sector, dados financeiros orçamentados e reais, contas analíticas, ou outros elementos relevantes que permitam avaliar os efeitos da pandemia;
  • É totalmente desaconselhável a tomada de ações unilaterais por parte dos contribuintes, como, por exemplo, violar deliberadamente o acordo, efetuar ajustamentos no pricing de operações intragrupo cobertas por um APPT ou tomar medidas que não sejam consistentes com os termos do acordo;
  • A(s) Administração(ões) Fiscal(is) deverá(ão), então, analisar a exposição do contribuinte à luz dos termos do próprio APPT, tendo em conta a legislação aplicável, podendo resultar na execução do acordo, ou, antes, na sua revisão, rescisão, ou, no limite, revogação. 

Recomendações da OCDE para APPTs sob negociação

  • Nos acordos sob negociação, os contribuintes e as Administrações Fiscais, deverão adotar uma postura flexível, colaborativa e transparente;
  • Por exemplo, poderão ser acordados APPTs de curto prazo para os períodos afetados pela pandemia, seguidos de um segundo APPT para o período pós pandemia; ou APPTs de longo prazo celebrados com o compromisso de alterar retroativamente as suas condições a fim de refletir adequadamente os efeitos da pandemia, logo que estes sejam conhecidos.